sábado, 3 de outubro de 2009

O Fantástico Reparador de Feridas

Conheci o Domingos através da Diva, na estréia da peça Idiota no país dos absurdos, e não tive dúvidas em conferir mais este espetáculo que está em cartaz no Centro Cultural São Paulo até 1° de Novembro.

Três personagens, quatro monólogos e a história de uma trupe bastante incomum que viaja por cidadezinhas do interior, apresentando um número que se situa entre uma representação teatral e um culto religioso de cunho sobrenatural. Esse é o ponto de partida para as situações que acontecem na peça O Fantástico Reparador de Feridas, do irlandês Brian Friel, dirigida e traduzida por Domingos Nunez, tendo como protagonistas Walter Breda (comemorando 50 anos de carreira), Mariana Muniz e Rubens Caribé. A produção é da Cia. Ludens, grupo teatral que se dedica à montagem de textos de dramaturgos da Irlanda.

Os três personagens de O Fantástico Reparador de Feridas são Frank, Grace e Teddy. Frank (Walter Breda) é um homem que vive atormentado por possuir um dom sobre o qual não tem nenhum controle e tenta aplacar seus questionamentos com doses colossais de uísque. Sua mulher, Grace (Mariana Muniz), advogada e filha de um juiz aristocrata, acusa, defende, busca evidências e comprovações para justificar seu estado mental. Teddy (Rubens Caribé), empresário de artistas exóticos e decadentes, transita entre a frieza profissional, a admiração por Frank e uma possível paixão por Grace. Juntos, os três tentam sobreviver cobrando ingressos de inválidos em apresentações das quais podem sair curados. De vilarejo em vilarejo vão vivendo suas histórias e cada um tem sua própria versão dos fatos. Talvez o elemento de ligação que permeie a produção dramatúrgica de Friel seja o seu esforço em discutir através do teatro as diversas formas de representação da linguagem e suas convenções. Em O Fantástico Reparador de Feridas Friel constrói sua narrativa totalmente calcada nas possibilidades da metalinguagem. O rigor da carpintaria teatral, a ousadia do dramaturgo com este experimento, a temática abordada e a proposta estética sugerida pelo próprio texto são elementos que fazem desta peça um dos momentos mais criativos dentro da trajetória artística do escritor. Com o texto construído sobre a estrutura de quatro monólogos, Friel se propõe questionar a linguagem articulada como instrumento seguro para um testemunho que ateste com precisão a veracidade dos fatos. A memória, os sentimentos e interesses escusos são poderosos agentes que atuam sobre a linguagem no sentido de distorcê-la, amenizá-la, ridicularizá-la. Assim, cada uma das personagens da peça narra diretamente para a platéia, de acordo com suas próprias conveniências, alguns fatos que vivenciaram juntas durante uma época. Ao contar suas experiências, as personagens têm o intuito de convencer os espectadores e a si próprias de que aquele ponto de vista é o que mais se aproxima do que realmente aconteceu. Aos poucos, tece-se uma cadeia de informações que se complementam e se opõem e que, necessariamente, pela própria natureza da linguagem articulada, levarão os espectadores a tirar suas próprias conclusões. Extremamente atual, este texto coloca a questão da manipulação da linguagem como um dos pilares para uma possível representação do mundo contemporâneo. Em última análise, tudo depende do ponto de vista do observador que, de um modo ou de outro, relativiza os discursos a que está exposto e os reorganiza de acordo com suas próprias necessidades, sentimentos e limitações. A natureza religiosa do número que apresentam aproxima o texto do Brasil, em cujo território proliferam-se igrejas, templos e curandeiros que prometem tipos variados de curas e arrastam multidões de necessitados. Seus cultos se transformam em uma mistura de busca por um sentimento de fé genuína, com demonstrações que facilmente fariam parte de um “freak show” e exibições de cenas dignas de um filme de horror.



Postado ao Som de Elomar Figueira Mello

0 comentários: